Entre pausas e epifanias: como ler Clarice para a prova de Linguagens da UERJ
Por Raphael Alves de Oliveira, Professor do Colégio Imaculado Coração de Maria Mestre e Doutorando em Linguística- UERJ
Todos os anos, milhares de estudantes encaram a prova de Linguagens da UERJ como um enigma. Muitos a colocam tal qual um desafio técnico, uma sequência de armadilhas disfarçadas de texto. Mais do que um enigma, a prova de Linguagens pode ser lida como um retrato — ainda que fragmentado — da forma como interpretamos o mundo: percebemos imagens, ouvimos vozes, elaboramos sentidos.
A presença do conto Amor, de Clarice Lispector, na prova de 2026 reforça essa leitura. Nos últimos anos, a UERJ tem promovido votações públicas para a escolha das obras literárias, e a seleção desse conto sugere uma sintonia rara entre proposta institucional e desejo coletivo. Trata-se de uma narrativa breve e silenciosa, construída por pausas e deslocamentos — uma leitura que convida à escuta, à atenção ao detalhe, ao que permanece em suspenso. Não por acaso, essa escolha coletiva reflete o que a prova mais valoriza: a sensibilidade diante do não dito — a mesma que a obra de Clarice exige do leitor.
Amor é um conto breve, mas de grande densidade. Ana, sua protagonista, está a caminho do mercado, em um bonde. Sua vida é comum, marcada pela segurança da rotina. No entanto, um evento aparentemente banal — o encontro com um cego mascando chicletes — interrompe esse fluxo e rompe uma estabilidade interior. A partir dali, Ana já não retorna ao ponto de onde partiu.
A prova de Linguagens da UERJ, aplicada na 1ª fase (Exame de Qualificação), não cobra conhecimentos decorados de gramática, nem exige definições de termos literários. O foco está na capacidade de leitura crítica e na interpretação de textos verbais e não verbais — crônicas, propagandas, tirinhas, poemas, narrativas. Mais do que identificar informações, é necessário perceber relações entre linguagem, contexto e efeito de sentido.
Em 2026, o edital reforçou essa orientação ao introduzir termos mais profundos, como epifania e metaficção, além das já conhecidas verossimilhanças externa e interna. Isso amplia o campo de análise para além do conteúdo imediato: o que se espera agora é uma leitura que compreenda como o texto provoca, transforma e desestabiliza — exatamente como faz Clarice.
No caso da verossimilhança, a externa se manifesta nas situações reconhecíveis: Ana é uma mulher comum, vivendo uma rotina urbana possível. Por outro lado, a interna se evidencia na coerência emocional da personagem. Ainda que não haja grandes explicações, seus sentimentos ressoam de forma legítima. A crise não é racionalizada: ela pulsa por entre frases fragmentadas, silêncios e hesitações.
Já a epifania — novidade no edital — corresponde ao instante em que a rotina da personagem se rompe, revelando algo que antes estava oculto. Nesse momento, não há grandes revelações nem clímax convencionais. Clarice sugere uma transformação interior, sutil, que não se explica racionalmente — e o leitor percebe essa mudança não pelos fatos, mas pelo ritmo hesitante da linguagem, pelas imagens que se repetem, pelos silêncios que se prolongam.
Quanto à metaficção, ela aparece de forma sutil ao longo do conto: em certos momentos, a linguagem chama atenção para si mesma, lembrando o leitor de que está diante de uma construção narrativa. Por esse motivo, somos deslocados da trama e convidados a perceber que o texto também reflete sobre o próprio ato de narrar. Esse efeito produz desconforto, pois quebra a imersão e revela as fissuras da rotina — tanto de Ana quanto do leitor. A personagem se desorganiza, e nós, leitores, também.
Para quem se prepara de verdade, o primeiro passo é abandonar a ideia de que Amor é um enigma a ser resolvido. O conto não foi feito para ser decifrado, mas para ser vivido. Na primeira leitura, permita-se ser afetado: sinta o incômodo do cego, o silêncio, a pausa. Depois, releia observando como a linguagem de Clarice muda: onde há tensão? Onde a rotina se fragmenta? Quais escolhas formais indicam essa virada?
Mais importante ainda: lembre-se de que epifanias também acontecem fora da literatura. Um cheiro, uma lembrança, uma interrupção inesperada da rotina — todos já vivemos algo assim. E essa experiência é chave para compreender o que o Amor propõe. A UERJ quer saber se o candidato é capaz de perceber essas camadas, mesmo que o texto não explique tudo.
Costumo dizer aos meus alunos que o bom leitor não é aquele que sabe tudo, mas aquele que se deixa afetar. Que retorna ao texto não para confirmar o que pensa, mas para descobrir o que sente. Quando o conto nos desconcerta, é sinal de que começamos a ler com o corpo inteiro — e é isso que a prova espera.
Isso não significa, claro, que o preparo técnico não seja importante. É fundamental conhecer a estrutura da prova, entender o estilo das perguntas e estabelecer uma rotina de estudos consistente. A revista da UERJ, com questões comentadas e temas recorrentes, é uma ferramenta essencial. Preparar-se com atenção e estratégia é tão necessário quanto sensibilidade.
Ler Amor, nesse contexto, torna-se um ensaio geral. Um exercício de leitura fina, percepção de camadas e coragem para acolher o desconforto. Não basta saber o que é epifania — é preciso reconhecê-la quando ela acontece. Não basta definir verossimilhança — é preciso senti-la operando. Porque o que a UERJ cobra, no fundo, é a presença do leitor inteiro: atento, crítico e sensível.
E talvez seja isso que Clarice sempre quis: não respostas, mas companhia no silêncio.